Inconsciente Coletivo


O conceito de Inconsciente Coletivo foi criado pelo psiquiatra e psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) para designar a esfera psíquica que contém elementos comuns a toda humanidade. Desde sua primeira formulação, o autor veio ao longo de toda sua vida buscando refinar e atualizar tal conceito que, portanto, passou por diversas formulações teóricas até chegar em sua versão “final”. Coloquei a palavra entre aspas, pois certamente Jung continuaria o trabalho de revisão teórica caso não tivesse morrido. Ou seja, o Inconsciente Coletivo, dependendo de que ponto da vasta obra de Jung é abordado, pode ser entendido de uma dada forma. Mas, em momento algum, Jung postulou o Inconsciente Coletivo da maneira comumente entendida pelo senso comum.

O senso comum (e infelizmente alguns profissionais da área da psicologia e psicanálise) tem certa dificuldade em compreender a ideia de Inconsciente Coletivo, pois as informações que chegam até ele sobre tal conceito muitas vezes é distorcida e muito distante do que realmente procura expressar. De maneira geral, costumo perceber que o Inconsciente Coletivo é tratado de forma leiga como se fosse uma espécie de “nuvem de dados” comum à toda humanidade; espécie de google drive da nossa espécie. Esta compreensão errônea aproxima o Inconsciente Coletivo de uma ideia esotérica conhecida como “registro akáshico”, algo como um depósito da memória coletiva humana que pode ser acessado através de determinadas técnicas. A realidade do conceito está muito longe disso.

Vamos por partes. “Inconsciente” designa tudo aquilo que não é conhecido - tudo aquilo que não é consciente. No caso do inconsciente pessoal, portanto, o que está em pauta são todos os conteúdos psíquicos que fazem parte da vida e experiência pessoal de um sujeito, mas que por uma série de fatores não alcançam a consciência e assim não são conhecidos. “Coletivo” diz respeito a tudo que é compartilhado, tudo que existe em comum entre todos os seres humanos, e existe a priori da existência e experiência individual. E, para Jung, o que toda a humanidade compartilha em comum é a biologia, a identidade orgânica que faz um homo sapiens ser um homo sapiens. O autor entende que, embora as características físicas e mentais, as experiências, sentimentos e pensamentos de cada ser humano seja única, singular, todos compartilham do mesmo substrato biológico... E, portanto, das mesmas bases instintivas.

O Inconsciente Coletivo, este Desconhecido Comum a Toda Humanidade, é formado por matrizes instintivas que organizam, que dão forma, a todos os modos de agir, reagir, perceber, afetar-se e produzir imagens a respeito de toda experiência tipicamente e inevitavelmente comuns a toda humanidade: morte, nascimento, amadurecimento, velhice, sofrimento, produção de conhecimento, maternidade, infância etc. Jung irá chamar essas matrizes de Arquétipos. Logo, o Inconsciente Coletivo é formado pelos Arquétipos.

Arquétipos, nos dirá Jung, são a “psiquificação dos instintos”. Os instintos são produtos da dinâmica entre biologia e meio ambiente. São determinantes do comportamento. Não são fatos psíquicos em sua pureza. Mas, tão logo atingem a “fronteira” entre o orgânico e o psíquico, os instintos se tornam arquétipos. Estes são como formas sem conteúdo, pois o conteúdo que terão - que imagem irão gerar ao entrar no campo da consciência - será dado pelos elementos disponíveis na cultura na qual o indivíduo está inserido. Tais manifestações, portanto, jamais são os arquétipos em si; são as imagens arquetípicas. Assim, é errôneo falar, por exemplo, em “arquétipo de Deméter”. Deméter é uma imagem arquetípica derivada de elementos culturais fornecidos por dado contexto cultural existente na Grécia Antiga. O arquétipo não é Deméter, e sim a maternidade. Maternidade, percebam, é substantivo abstrato: não tem representação em si.

Ficou claro, ou menos confuso, o que é o Inconsciente Coletivo? Perceberam como não envolve necessariamente nenhuma formulação esotérica?

Glossário - Dogma e Ritual da Alta Magia

(Trabalho em andamento, sujeito a atualizações)

Acreditar: concordar com o que ainda não se sabe, mas que a razão nos certifica que um dia saberemos, ou ao menos reconheceremos.

Animais: assim como os Elementos, são imagens dos afetos, desejos, paixões, forças instintivas da natureza que, como tal, atual por inércia e repetição.

Axiomas da filosofia oculta: o primeiro é “Sou o que Sou”.

Bode de Mendes: a força vital, material.

Ciência Mágica: conhecer a si mesmo. Tal sabedoria contém as outras e é a base da Grande Obra.

Diabo: o que é ignorado, irrefletido, arrogante, desconhecido, automático.

Diáfano: (ou imaginação, ou translúcido) é o olho da alma. É nela que as formas se materializam, é através dela que é possível ver os reflexos do invisível. É o aparato da vida mágica. É o instrumento de adaptação do verbo. É ela que excita a Vontade e lhe da o poder sobre o Agente Universal.

Doutrina única da magia: o visível é a manifestação do invisível.

Elementos: assim como os animais são imagens dos afetos, desejos, paixões, forças instintivas da natureza que, como tal, atual por inércia e repetição.

Grande Obra: a criação/diálogo, com Si Mesmo.

Imaginação: (ou diáfano, ou translúcido) é o olho da alma. É nela que as formas se materializam, é através dela que é possível ver os reflexos do invisível. É o aparato da vida mágica. É o instrumento de adaptação do verbo. É ela que excita a Vontade e lhe da o poder sobre o Agente Universal.

Liberdade: agência em relação aos afetos, desejos, paixões, forças instintivas da natureza que, como tal, atual por inércia e repetição.

Magia: ciência tradicional dos segredos da natureza.

Mago: microprosopus, isto é, o criador do microcosmo.

Morte: mudança ou transformação.

Mudança ou Transformação: Morte.

Pentáculo: um aspecto que expressa a ciência universal.

Sanctum Regnum: a ciência e o poder dos magos. Envolve a prática dos 4 verbos: Saber, Querer, Ousar e Calar.

Translúcido: (ou diáfano, ou imaginação) é o olho da alma. É nela que as formas se materializam, é através dela que é possível ver os reflexos do invisível. É o aparato da vida mágica. É o instrumento de adaptação do verbo. É ela que excita a Vontade e lhe da o poder sobre o Agente Universal.

Dogma e Ritual da Alta Magia - Capítulo 1

  

Nossa ideia é produzir artigos não sequenciais sobre a obra Dogma e Ritual da Alta Magia (1854-1856) do ocultista francês Eliphas Levi (Alphonse Louis Constant), com o objetivo de lançar insights sobre seu pensamento e procurar organizar os conceitos apresentados na obra, talvez na forma de um mini glossário.

Não faremos uma introdução biográfica sobre o autor, porém para contextualizar minimamente quem foi Eliphas Levi, deixamos aqui alguns dados relevantes: nascido em Paris em 1810; ordenado diácono pela Igreja Católica, mas abandona a vida eclesiástica em 1836; preso em 1841 por escritos contestando o imperador; considerado por muitos o maior ocultista do século 19. 

Outro ponto que deixaremos de lado diz respeito ao aprofundamento das relações cabalísticas existentes na obra. Este vasto campo poderá ser abordado em outra ocasião.

Iniciaremos pelo Capítulo 1 do Dogma. Levi associa cada capítulo a um número, uma letra do alfabeto hebraico, uma sephira cabalística e um arcano do tarot. Portanto, temos:

  • 1
  • Aleph
  • Ain Soph ("O Sem Limites")
  • Kether ("Coroa")
  • O Iniciado
  • Disciplina
Sendo o primeiro capítulo, Levi apresenta as bases de sua epistemologia mágica. Comenta a respeito dos requisitos básicos para um sujeito se tornar uma praticante do que ele chama de ciência mágica, natural ou oculta. Seu texto começa trazendo o axioma cartesiano "penso, logo existo", axioma este que foi a solução encontrada por René Descartes para fundamentar, sustentar, iniciar seguramente, sua ciência. Levi, através de uma série de argumentações, constrói as bases de sua ciência mágica a partir de um outro axioma, encontrado na tradição judaico-cristã, que é:
 
Há o ser. O ser é o ser. O ser é o princípio. 
 
"Sou o que sou" é, para o autor, o primeiro axioma da filosofia oculta. A partir deste ponto-chave e indiscutível, o autor inicia uma série de desdobramentos, como ocorre entre as emanações das sephirot. Um exemplo simplista seria: como bonecas matrioska. Assim, o ser é o princípio, e é a condição de possibilidade do Verbo / Palavra. 
 
O Verbo é a manifestação do ser e também seu primeiro véu, e é um sinal característico da vida.
 
Nas palavras do autor: "Só há uma doutrina na magia: o visível é  manifestação do invisível".
 
Importante ressaltar que Verbo denota ação. Portanto, é através da agência ativa que um princípio abstrato pode ser percebido, pode se manifestar. Toda vida é agente. Toda a vida é o Verbo que remete a um ser. Levi também introduz um conceito que não fica plenamente explicitado neste capítulo, mas que é fundamental: o de Inteligência. A inteligência,  o logos, está intimamente atrelado ao ser. "Sou, logo penso".

Inteligência é um princípio (ser) que fala (se manifesta). A palavra é uma emanação da inteligência.
 
Nas palavras do autor: "O ser é o princípio, a palavra é o meio e plenitude ou desenvolvimento e a perfeição do ser, o fim. Falar é criar". Resumidamente, até agora temos o esquema:

Ser → necessariamente é agente (Inteligência) → expressa a agência por palavras e ações (Verbo) → ações sobre o mundo produzem criações / formas.
 
Chegou até aqui? Resistiu a essa leitura? Você pode estar se perguntando: por que tudo isso? O que toda essa elucubração  filosófica tem a ver com magia? Chegaremos lá. Por hora, entenda que Levi, diferente dos magistas do caos que surgiriam no século seguinte, não estava interessado apenas nos resultados do trabalho mágico. Pelo contrário, tinha grande interesse em compreender como a magia funcionava. E, acredite, toda essa elucubração é importante nesse sentido, como começaremos a perceber daqui por diante.
 
Sendo o Ser o fundamento da ciência mágica, é necessário que se aborde o sujeito que estuda tal campo do saber. Quem é este sujeito? Quem é você? A resposta a esta pergunta produz um efeito cascata - emanações - infinito. Pois quem você é define como você age e se manifesta, o que por sua vez determina o que você cria, como você cria,  para que você cria, por que você cria. Levi nos remete à inscrição colocada sobre a entrada do Oráculo de Apolo, em Delfos: "Conhece a ti mesmo".
 

Tornar explícita a necessidade essencial de conhecer a si mesmo quando se trilha o caminho da magia é, ao nosso ver, uma das mais significativas contribuições do autor para a praxis da magia ocidental. Arriscamos dizer: algumas vertentes de psicologia e psicoterapia contemporâneas ocupam um lugar que se aproxima das saberes e práticas mágicas que têm como fundamento o ser e o autoconhecimento. Mas isso é assunto para outro texto...

Continuando. A palavra "adepto", muito usada na tradição esotérica ocidental para se referir ao estudioso e praticante de magia, de acordo com Levi significa "aquele que venceu por sua vontade e através de sua obra". Inteligência, Vontade e Obra são reflexos um do outro; como vimos dizendo, são emanações de um mesmo princípio: o ser. Portanto, no diz Levi, quem é escravo de suas paixões (instintos, desejos, afetos, ideias, crenças, preconceitos - irrefletidos, inconscientes) não é um adepto. A partir deste ponto, Levi começa a elencar uma série de preceitos que ratificam a importância do autoconhecimento no trabalho mágico. Conhecer a si  mesmo é a primeira ciência mágica. Ela contém todas as outras e é a base da Grande Obra: a criação de si mesmo.

"O mago dispões de uma força que ele conhece, o feiticeiro luta para abusar daquilo que ignora."

Nos informa que para não ser um escravo de si mesmo e do mundo, o sujeito deve manter uma postura de constante reflexão, humildade, desapego e atenção. E é veemente neste ponto. 

 "Jogue este livro fora!"

Brada Levi, aos que não estão dispostos  abraçar esta postura autocrítica. À tudo que é oposto a os preceitos citados, o autor associa a imagem do Diabo: o ignorado e a ignorância, a arrogância, a soberba. O antídoto para isso e a ponte para alcançar a ciência e o poder mágico é apresentado na forma dos famosos 4 verbos:

  • uma inteligência iluminada pelo estudo: SABER
  • uma audácia irrefreável: OUSAR
  • uma vontade inquebrável: QUERER
  • uma discrição que não se corrompe: CALAR

Diz o autor que "Esses quatro verbos podem ser combinados de quatro maneiras e podem ser explicados quatro vezes um pelo outro".

O mago (e aqui inclui a imagem do Arcano I do tarot) é o "microprosopus": o criador do pequeno mundo, do microcosmo. Magia é aqui definida como a ciência tradicional dos segredos da natureza. Ora, se anteriormente foi dito que conhecer a si  mesmo é a primeira ciência mágica, podemos inferir que para Levi magia é a ciência do autoconhecimento. 

O autor nos diz que morte é mudança/transformação, e mudança é morte. O processo de criação de si mesmo (Jung diria: o processo de entrega do Ego ao Si-Mesmo/Self/Selbst) só é possível através de uma série de transformações, ou mortes simbólicas. Mortes-em-vida. Morrer é abdicar de uma forma de estar vivo, de uma maneira de ser e estar no mundo. Diz Levi:

"Saber sofrer, abster-se e morrer, estes são os primeiros segredos que nos erguem sobre a dor, os desejos sensuais e o medo do vazio".

O processo de transformação ocorre a medida que o sujeito deixa de ser alheio, refém, um joguete de seus afetos, desejos, preconceitos, apegos, etc. e se torna consciente e, portanto, capaz de agir sobre eles. Levi usa a metáfora dos animais e dos quatro elementos para se referir a esses conteúdos que precisam ser trazidos à consciência e entende que liberdade significa ter agência sobre eles. Diz ele:

"Aprender a superar a si mesmo é aprender a viver".

E ainda:

"Ceder às forças da natureza* é seguir uma vida ordinária e ser escravo de causas segundas". [*no caso a própria natureza. - interpretação nossa].

As tais "causas segundas" representam tudo aquilo que não emana do ser: convenções sociais, ideias coletivas, visão de mundo transmitida pela família, etc. Arriscamos dizer que há aqui uma relação com a ideia de "pequeno eu", de Lacan, e de SAG e Verdadeira Vontade, conforme a doutrina de Thelema.

Chegando ao final do capítulo, Levi apresenta uma visão algo fractal-monística de sua metafísica. Diz o autor:

"[...] não existe um ponto no espaço infinito que não seja o centro de um círculo cuja circunferência se estende e retrai no espaço perpetuamente".

E ainda:

"O que podemos dizer sobre a alma em sua totalidade podemos dizer sobre cada uma de suas faculdades".
 
Retoma a imagem do Arcano I - O Mago, e sua postura com uma mão erguida com a baqueta e outra abaixada com a moeda: Solve e coagula. O que há em cima é como o que há embaixo. A relação refletida entre macrocosmo e microcosmo. Compara à imagem a letra hebraica aleph: א

"Um está em um, tudo etá em tudo".

E é assim que o mago produz maravilhas com sua magia: ele é parte do todo, assim como ele é todo. O que ocorre com ele, nele, se reflete no mundo. Se o sujeito não conhece a si mesmo, se é apartado do próprio ser, se é marionete da natureza cega, seu verbo é vão e sua criação, deformada. 

Em sua atuação mágica, o mago conta com duas faculdades centrais: Inteligência e Vontade. Mas ambas são auxiliadas por "[...] uma faculdade cujo poder imenso pertence exclusivamente ao domínio da magia": a Imaginação. A imaginação é, nas palavras do autor, "o aparato da vida mágica" e "o instrumento de adaptação do Verbo".

Eis outra contribuição preciosa de Levi ao saber mágico ocidental: a importância da imaginação (também chamada de diáfano ou translúcido) enquanto espécie de meio de percepção, sexto sentido, terceiro olho, da vida mágica. Levi explica que a imaginação é o olho da alma: é nela que as formas se materializam, é através dela que podemos observar os reflexos do invisível. A imaginação é que excita e potencializa a Vontade, fornecendo-lhe o poder sobre o "agente universal". O que é este tal agente universal? O autor não revela neste capítulo.
 
Em um outro ensaio de definição do que é magia, Levi diz: "[...] a ciência da unidade da Imaginação e da solidariedade de todas as partes", novamene colocando a imaginação numa posição privilegiada e ratificando a metafísica do Unus Mundus, isto é, tudo é um. Nós do Gabinete nos surpreendemos por Levi não ter icluído o imaginar como um dos verbos centrais da magia, ao lado do saber, querer, calar e ousar.

Encerramos aqui nossos comentários sobre o Capítulo I. Em breve faremos um pseudo glossário dos termos e conceitos apresentados até aqui.

 

Novo episódio do podcast!

No qual apresento mais um devaneio interpretativo, dessa vez, a respeito do Arcano I do tarot, o Mago. Será o Mago apenas um Mágico? 

Se você já leu o artigo sobre o Mago aqui no blog, a única novidade do áudio é o spoiler do nosso próximo conteúdo! Escute clicando na imagem:

Novo episódio do podcast!

 No qual abordamos uma conceituação (a partir da teoria de Carl G. Jung) a respeito do que é um símbolo, como se forma, qual sua natureza e propósito. Similar ao texto já postado no blog. Não tem tempo de ler? Escute! Acesse através do link abaixo:

Simbolos

 
 
Afinal, o que é um símbolo?

Como toda ideia, seu significado depende da forma como é conceituada.

Comumente, a palavra "símbolo" é usada para designar uma imagem que representa, de maneira fixa, uma ideia. Por exemplo, a imagem de um círculo vermelho com uma diagonal vermelha cruzando seu centro é quase que universalmente associado a ideia de "é proibido". É o símbolo que representa a ideia "é proibido".

Esta aplicação da ideia de símbolo, mais corriqueira, tem uma exigência para que seja eficaz: o significado da imagem/símbolo deve ser amplamente conhecido, aceito e usado num dado contexto cultural. Quando os invasores portugueses chegaram ao Brasil, os povos que aqui habitavam não faziam ideia do significado dos brasões familiares que os invasores portavam, apesar destes terem um significado evidente entre os portugueses.  

Símbolos, assim compreendidos, têm um significado único. Como veremos a seguir, estes na verdade não deveriam ser chamados de "símbolos", mas sim de "signos" ou "sinais" (nenhuma relação com o Zodíaco).

Entre os diversos outros conceitos de símbolo, que extrapolam esse uso mais simples, trago à pauta aquele  utilizado por Carl Gustav Jung.

De acordo com o psicólogo e psiquiatra suíço (e que já chegou a possuir a maior biblioteca de textos alquímicos da Europa, diga-se de passagem), símbolo é uma imagem que apresenta, da melhor maneira possível, algo que ainda não é plenamente conhecido pela Consciência.

Vamos elaborar este conceito. Primeiro, precisamos compreender minimamente o que Jung entendia como consciência e inconsciente. Minimamente, repito. Pois é um tema extremamente complexo e vasto. Caso queiram, podemos abordá-los em outras postagens.

Consciência é um campo da psique cujos conteúdos nos são acessíveis. Tudo que conhecemos faz parte de nossa Consciência. Temos suficiente autonomia no campo da consciência para elaborar ideias, fazer associações, evocar memórias, refletirmos sobre nossos sentimentos, etc.

Inconsciente é tudo que não faz parte da Consciência (não entrarei aqui nas subdivisões de Inconsciente Individual, Cultural e Coletivo. Fiquemos apenas com a ideia básica). Não temos autonomia sobre seus conteúdos desconhecidos e portanto, por uma questão lógica, não podemos evocá-los de forma voluntária, elaborá-los ou refletir sobre eles. Os conteúdos Inconscientes se manifestam de maneira indireta, como sonhos, lapsos de fala, sintomas somáticos, etc. Não é possível saber o que são ou qual é a real natureza, dos conteúdos do Inconsciente.

Agora voltemos aos símbolos. Para Jung, o símbolo é a imagem (e por ser imagem já está no campo da Consciência) capaz de promover a ligação entre esses dois campos da psique. Porque, em si, traz elementos já conhecidos e outros que causam estranheza, angústia, espanto, maravilhamento, curiosidade - enfim, sensações que nos instigam a ir além do que já está estabelecido. Nos incitam a investigar, explorar, buscar, dar asas à sensação de que "tem algo oculto", "algo a mais". Jung chamava esta capacidade de Função Transcendente do Símbolo.

Símbolos, portanto, nunca podem ser criados por um exercício de vontade. Afinal, quando tomamos a iniciativa e produzir uma imagem, estamos fazendo uso do campo da Consciência - o único ao nosso alcance. Símbolos são produzidos espontaneamente, naturalmente. Surgem nos sonhos, nas visões místicas, nas inspirações.

O objetivo do símbolo assim compreendido é produzir a união de aspectos conscientes e inconscientes, de maneira que o campo da Consciência se enriqueça, expanda, ganhe mais flexibilidade. Além disso, tal ganho de conhecimento não é feito aleatoriamente. Existe um movimento compensatório, homeostático, entre a Consciência e o Inconsciente, de forma que a primeira receba o conhecimento necessário para que equilibre alguma tendência que no momento se mostra muito intensificada ou enfraquecida.

Dito isso, acredito que tenha ficado claro que o significado de um símbolo é criado pelo indivíduo. É algo único. Novo. Não é possível recorrer a um "dicionário de sonhos", por exemplo, já que o só o indivíduo no qual o símbolo surgiu é capaz de elaborar seu significado baseado em sua experiência, sua vivência, memórias, crenças, afetos.

Tão logo um símbolo seja suficientemente decifrado pelo indivíduo; tão logo a Função Transcendente se cumpra e o conhecimento portado pelo símbolo seja integrado à Consciência, o símbolo se torna "morto". Vira um signo. Aqui, signo tem o mesmo significado que abordamos no início dessa explicação: uma imagem que representa uma ideia única, fixa, estática.

Ficou claro? Caso tenham alguma dúvida, escrevam nos comentários ou em nossas redes sociais! Gostaram? Divulguem o Gabinete de Estranhezas!

Devaneios Interpretativos: [ I ] O Mago (Le Bateleur)

Le Bateleur é o Mágico, o Prestidigitador, o Malabarista, o Artista de Rua. Às vezes, um Trambiqueiro. Sujeito da plebe, ganha seu pão entretendo a audiência. Confunde, desvia, manipula a atenção dos transeuntes para realizar seus truques. Carismático, astuto, autodidata, rápido no improviso, talentoso. Sujeito extrovertido, vive nas ruas em meio a multidão. Não tem vergonha de se expor - precisa se expor. Mas, repito: o Arcano I é o Mágico, e não o Mago. 

Em sua mesa podemos ver suas ferramentas de ofício: copos, bolinhas, dados, faca, bolsas, moedas. Suas mãos ligeiras manipulam com destreza os Quatro Elementos, que também são as Quatro Funções que a Alma possui para acessar o mundo: sentimento, pensamento, percepção e intuição. Porém, tal manejo tem como objetivo entreter, conseguir algum dinheiro e mesmerizar. Um grande potencial ainda subutilizado, visto que está canalizado para as superficialidades do dia a dia... Como faria uma criança, se a ela fossem dados objetos cujo uso pleno exige maior reflexão, aprofundamento e maturidade.

O  [ I ], seu número, apoia a ideia do Mago-Criança. O potencial pleno da consciência do Louco agora ganha forma através dos quatro elementos e funções psíquicas, mas sua ação no mundo ainda é pautada no improviso, entretenimento, busca por atenção e aprovação do exterior.

Mas o Mago desviou minha atenção. Volto a olhar para sua mesa. Esta parece continuar para além dos limites da carta: o quarto pé não aparece, nem a outra extremidade do tampo. Que outros objetos podem estar ocultos? O Mago não sabe, pois seu olhar está voltado para a direção oposta, para trás, para o ontem. Imagino que tal conjunto simbólico informe que o Mago ainda tem muito o que aprender, descobrir, desde que olhe para frente e siga adiante. Crianças precisam desapegar da energia livre da infância para que se desenvolvam.

Em suas mãos, uma moeda abaixo, uma baqueta acima. De acordo com Jorodowsky, ambos são elementos telúricos: matéria/sensorialidade e criatividade/desejo/inspiração. E assim trabalha o Mago, com toda naturalidade e imaginação, sagacidade e pragmatismo. A maneira como segura tais instrumentos, no entanto, já nos mostra seu potencial para solver e coagular, para operar o fluxo do agente mágico entre micro e macrocosmo.

Sua baqueta, aliás, é muito semelhante aquela portada pela mulher no centro do [ XXII ] Mundo, inclusive na mesma mão. A mulher tem o olhar e a expressão facial muito semelhantes às do Mago. Seriam a mesma pessoa? O início e a conclusão da jornada, da ROTA-TARO? No chão, sob a mesa, entre as pernas do Mago, há uma estranha planta, diferente das demais, com um formato que se assemelha a uma vagina. O Mago, sendo o Mágico, poderia estar enganando a plateia inclusive no que diz respeito ao seu gênero... 

E aqui não sejamos concretistas. Gênero como símbolo. Yin e Yang. Como havia dito antes, solver e coagular. A fluidez com que pode alterar a expressão do seu gênero é um reflexo, um eco, de sua aliança com Hermes-Mercúrio, patrono da Alquimia: o mercúrio é um metal líquido na temperatura ambiente, é rápido, escorregadio, assume qualquer forma, escapa quando tentamos agarrá-lo e sua superfície é reflexiva.

Para o Mago se desenvolver, para não ser apenas um mágico, precisa dar outro uso para suas ferramentas e habilidades. O que ele faria com elas caso não precisasse se preocupar com sua subsistência, caso não houvesse uma audiência, caso o interesse pelo mundano se perdesse? Para obter tal resposta, o Mago precisa se isolar de seu estilo de vida, da rua e das multidões. Precisa desacelerar. Precisa, enfim, de introspecção. Em busca de tal reclusão para refletir, o Mago é levado à [ II ] Papisa.