Nossa ideia é produzir artigos não sequenciais sobre a obra Dogma e Ritual da Alta Magia (1854-1856) do ocultista francês Eliphas Levi (Alphonse Louis Constant), com o objetivo de lançar insights sobre seu pensamento e procurar organizar os conceitos apresentados na obra, talvez na forma de um mini glossário.
Não faremos uma introdução biográfica sobre o autor, porém para contextualizar minimamente quem foi Eliphas Levi, deixamos aqui alguns dados relevantes: nascido em Paris em 1810; ordenado diácono pela Igreja Católica, mas abandona a vida eclesiástica em 1836; preso em 1841 por escritos contestando o imperador; considerado por muitos o maior ocultista do século 19.
Outro ponto que deixaremos de lado diz respeito ao aprofundamento das relações cabalísticas existentes na obra. Este vasto campo poderá ser abordado em outra ocasião.
Iniciaremos pelo Capítulo 1 do Dogma. Levi associa cada capítulo a um número, uma letra do alfabeto hebraico, uma sephira cabalística e um arcano do tarot. Portanto, temos:
- 1
- Aleph
- Ain Soph ("O Sem Limites")
- Kether ("Coroa")
- O Iniciado
- Disciplina
Sendo o primeiro capítulo, Levi apresenta as bases de sua epistemologia mágica. Comenta a respeito dos requisitos básicos para um sujeito se tornar uma praticante do que ele chama de ciência mágica, natural ou oculta. Seu texto começa trazendo o axioma cartesiano "penso, logo existo", axioma este que foi a solução encontrada por René Descartes para fundamentar, sustentar, iniciar seguramente, sua ciência. Levi, através de uma série de argumentações, constrói as bases de sua ciência mágica a partir de um outro axioma, encontrado na tradição judaico-cristã, que é:
Há o ser. O ser é o ser. O ser é o princípio.
"Sou o que sou" é, para o autor, o primeiro axioma da filosofia oculta. A partir deste ponto-chave e indiscutível, o autor inicia uma série de desdobramentos, como ocorre entre as emanações das sephirot. Um exemplo simplista seria: como bonecas matrioska. Assim, o ser é o princípio, e é a condição de possibilidade do Verbo / Palavra.
O Verbo é a manifestação do ser e também seu primeiro véu, e é um sinal característico da vida.
Nas palavras do autor: "Só há uma doutrina na magia: o visível é manifestação do invisível".
Importante ressaltar que Verbo denota ação. Portanto, é através da agência ativa que um princípio abstrato pode ser percebido, pode se manifestar. Toda vida é agente. Toda a vida é o Verbo que remete a um ser. Levi também introduz um conceito que não fica plenamente explicitado neste capítulo, mas que é fundamental: o de Inteligência. A inteligência, o logos, está intimamente atrelado ao ser. "Sou, logo penso".
Inteligência é um princípio (ser) que fala (se manifesta). A palavra é uma emanação da inteligência.
Nas palavras do autor: "O ser é o princípio, a palavra é o meio e plenitude ou desenvolvimento e a perfeição do ser, o fim. Falar é criar". Resumidamente, até agora temos o esquema:
Ser → necessariamente é agente (Inteligência) → expressa a agência por palavras e ações (Verbo) → ações sobre o mundo produzem criações / formas.
Chegou até aqui? Resistiu a essa leitura? Você pode estar se perguntando: por que tudo isso? O que toda essa elucubração filosófica tem a ver com magia? Chegaremos lá. Por hora, entenda que Levi, diferente dos magistas do caos que surgiriam no século seguinte, não estava interessado apenas nos resultados do trabalho mágico. Pelo contrário, tinha grande interesse em compreender como a magia funcionava. E, acredite, toda essa elucubração é importante nesse sentido, como começaremos a perceber daqui por diante.
Sendo o Ser o fundamento da ciência mágica, é necessário que se aborde o sujeito que estuda tal campo do saber. Quem é este sujeito? Quem é você? A resposta a esta pergunta produz um efeito cascata - emanações - infinito. Pois quem você é define como você age e se manifesta, o que por sua vez determina o que você cria, como você cria, para que você cria, por que você cria. Levi nos remete à inscrição colocada sobre a entrada do Oráculo de Apolo, em Delfos: "Conhece a ti mesmo".
Tornar explícita a necessidade essencial de conhecer a si mesmo quando se trilha o caminho da magia é, ao nosso ver, uma das mais significativas contribuições do autor para a praxis da magia ocidental. Arriscamos dizer: algumas vertentes de psicologia e psicoterapia contemporâneas ocupam um lugar que se aproxima das saberes e práticas mágicas que têm como fundamento o ser e o autoconhecimento. Mas isso é assunto para outro texto...
Continuando. A palavra "adepto", muito usada na tradição esotérica ocidental para se referir ao estudioso e praticante de magia, de acordo com Levi significa "aquele que venceu por sua vontade e através de sua obra". Inteligência, Vontade e Obra são reflexos um do outro; como vimos dizendo, são emanações de um mesmo princípio: o ser. Portanto, no diz Levi, quem é escravo de suas paixões (instintos, desejos, afetos, ideias, crenças, preconceitos - irrefletidos, inconscientes) não é um adepto. A partir deste ponto, Levi começa a elencar uma série de preceitos que ratificam a importância do autoconhecimento no trabalho mágico. Conhecer a si mesmo é a primeira ciência mágica. Ela contém todas as outras e é a base da Grande Obra: a criação de si mesmo.
"O mago dispões de uma força que ele conhece, o feiticeiro luta para abusar daquilo que ignora."
Nos informa que para não ser um escravo de si mesmo e do mundo, o sujeito deve manter uma postura de constante reflexão, humildade, desapego e atenção. E é veemente neste ponto.
"Jogue este livro fora!"
Brada Levi, aos que não estão dispostos abraçar esta postura autocrítica. À tudo que é oposto a os preceitos citados, o autor associa a imagem do Diabo: o ignorado e a ignorância, a arrogância, a soberba. O antídoto para isso e a ponte para alcançar a ciência e o poder mágico é apresentado na forma dos famosos 4 verbos:
- uma inteligência iluminada pelo estudo: SABER
- uma audácia irrefreável: OUSAR
- uma vontade inquebrável: QUERER
- uma discrição que não se corrompe: CALAR
Diz o autor que "Esses quatro verbos podem ser combinados de quatro maneiras e podem ser explicados quatro vezes um pelo outro".
O mago (e aqui inclui a imagem do Arcano I do tarot) é o "microprosopus": o criador do pequeno mundo, do microcosmo. Magia é aqui definida como a ciência tradicional dos segredos da natureza. Ora, se anteriormente foi dito que conhecer a si mesmo é a primeira ciência mágica, podemos inferir que para Levi magia é a ciência do autoconhecimento.
O autor nos diz que morte é mudança/transformação, e mudança é morte. O processo de criação de si mesmo (Jung diria: o processo de entrega do Ego ao Si-Mesmo/Self/Selbst) só é possível através de uma série de transformações, ou mortes simbólicas. Mortes-em-vida. Morrer é abdicar de uma forma de estar vivo, de uma maneira de ser e estar no mundo. Diz Levi:
"Saber sofrer, abster-se e morrer, estes são os primeiros segredos que nos erguem sobre a dor, os desejos sensuais e o medo do vazio".
O processo de transformação ocorre a medida que o sujeito deixa de ser alheio, refém, um joguete de seus afetos, desejos, preconceitos, apegos, etc. e se torna consciente e, portanto, capaz de agir sobre eles. Levi usa a metáfora dos animais e dos quatro elementos para se referir a esses conteúdos que precisam ser trazidos à consciência e entende que liberdade significa ter agência sobre eles. Diz ele:
"Aprender a superar a si mesmo é aprender a viver".
E ainda:
"Ceder às forças da natureza* é seguir uma vida ordinária e ser escravo de causas segundas". [*no caso a própria natureza. - interpretação nossa].
As tais "causas segundas" representam tudo aquilo que não emana do ser: convenções sociais, ideias coletivas, visão de mundo transmitida pela família, etc. Arriscamos dizer que há aqui uma relação com a ideia de "pequeno eu", de Lacan, e de SAG e Verdadeira Vontade, conforme a doutrina de Thelema.
Chegando ao final do capítulo, Levi apresenta uma visão algo fractal-monística de sua metafísica. Diz o autor:
"[...] não existe um ponto no espaço infinito que não seja o centro de um círculo cuja circunferência se estende e retrai no espaço perpetuamente".
E ainda:
"O que podemos dizer sobre a alma em sua totalidade podemos dizer sobre cada uma de suas faculdades".
Retoma a imagem do Arcano I - O Mago, e sua postura com uma mão erguida com a baqueta e outra abaixada com a moeda: Solve e coagula. O que há em cima é como o que há embaixo. A relação refletida entre macrocosmo e microcosmo. Compara à imagem a letra hebraica aleph: א
"Um está em um, tudo etá em tudo".
E é assim que o mago produz maravilhas com sua magia: ele é parte do todo, assim como ele é todo. O que ocorre com ele, nele, se reflete no mundo. Se o sujeito não conhece a si mesmo, se é apartado do próprio ser, se é marionete da natureza cega, seu verbo é vão e sua criação, deformada.
Em sua atuação mágica, o mago conta com duas faculdades centrais: Inteligência e Vontade. Mas ambas são auxiliadas por "[...] uma faculdade cujo poder imenso pertence exclusivamente ao domínio da magia": a Imaginação. A imaginação é, nas palavras do autor, "o aparato da vida mágica" e "o instrumento de adaptação do Verbo".
Eis outra contribuição preciosa de Levi ao saber mágico ocidental: a importância da imaginação (também chamada de diáfano ou translúcido) enquanto espécie de meio de percepção, sexto sentido, terceiro olho, da vida mágica. Levi explica que a imaginação é o olho da alma: é nela que as formas se materializam, é através dela que podemos observar os reflexos do invisível. A imaginação é que excita e potencializa a Vontade, fornecendo-lhe o poder sobre o "agente universal". O que é este tal agente universal? O autor não revela neste capítulo.
Em um outro ensaio de definição do que é magia, Levi diz: "[...] a ciência da unidade da Imaginação e da solidariedade de todas as partes", novamene colocando a imaginação numa posição privilegiada e ratificando a metafísica do Unus Mundus, isto é, tudo é um. Nós do Gabinete nos surpreendemos por Levi não ter icluído o imaginar como um dos verbos centrais da magia, ao lado do saber, querer, calar e ousar.
Encerramos aqui nossos comentários sobre o Capítulo I. Em breve faremos um pseudo glossário dos termos e conceitos apresentados até aqui.